Motociclismo e sociedade
Sempre
referencio minhas crônicas através das experiências vividas durante
minhas viagens. Como nunca tenho horário pra chegar ao destino, me
permito conhecer locais, pessoas e histórias que me levam a ter momentos
de reflexão sobre o que é a nossa vida, o que é a nossa terra, nosso
povo e o quanto me orgulho de ser um brasileiro.
No sertão baiano, próximo de Feira
de Santana, numa daquelas retas infindáveis, avistei uma pequena
estradinha, de terra batida, que começava numa porteira na beira da BR
101 e se estendia até uma pequena elevação onde, contrastando com o azul
do céu, havia uma pequena casa, de cor avermelhada pelo barro, de onde
saía uma fumaça branca típica dos fogões à lenha, sobre a qual me
perguntei: Quem poderia morar naquele local tão longe de tudo e de
todos? Quem ali conseguiria viver?
Como aventureiro, percorri
aqueles mil e poucos metros de chão de terra quando, antes de chegar ao
destino, tive a minha primeira recepção. Um velho cão, amarelado pela
poeira, sem raça definida que, como se íntimo fosse, sequer latiu ou
demonstrou qualquer medo por aquele ser estranho que surgia em sua
frente ou mesmo pelo ronco do motor da moto. Com a calda balançando e um
olhar curioso, me escoltou até aquele casebre de estuque. Logo que
parei, tirei o capacete e quando retirava a bala-clava, tive a minha
segunda recepção. Surge, saindo de dentro da pequena casa, uma senhora
de estatura baixa, com a face curtida pelo sol e a pele bem enrugada,
com um lenço branco envolvendo a cabeça, onde ainda apareciam alguns
poucos cabelos brancos. Usava uma saia e uma blusa bastante envelhecidas
e descoradas pelo tempo de uso, chinelos de dedo mostrando as unhas
descamadas por fungos, um pequeno cigarro de palha no canto da boca
(outro menor, e já usado, sobre a orelha direita) e com uma expressão
corporal que evidenciava mais de nove décadas de existência.
Aquele primeiro contato visual foi
cercado de muita curiosidade. Ela, por ver aquele estranho sujeito,
todo de preto e tirando uma máscara e que chegara numa moto barulhenta
onde, certamente se fosse um ladrão, nada poderia conseguir de valioso
naquele local. Eu, por sua vez, mais curioso por querer saber como
poderia viver, naquele local, uma senhora tão idosa, cercada do nada,
sem nenhuma condição básica para uma sobrevivência digna ou com um
mínimo de conforto e atenção que sua possível idade exigiria?
Após um rápido e educado
cumprimento de “boa tarde senhora”, me apresentei e expliquei meus dois
motivos para entrar, mesmo que sem permissão, naquelas terras tão
longínquas. O primeiro era, apenas, conhecer quem ali poderia viver
naquele fim de mundo e, como segundo motivo seria que, se havia fumaça
saindo da casa é lógico que havia fogo, e se havia fogo poderia existir a
possibilidade de um cafezinho.
Sem qualquer medo ou comportamento
repressivo diante daquele meu abuso, aquela idosa senhora, de voz baixa
e macia, identificou-se como D. Tercinha, de Natércia, seu nome de
batismo e, após convidar-me para entrar e pedir que não reparasse sua
casinha simples, disse: Vou passar um cafezinho pro moço.
Meus amigos, talvez em poucas
linhas eu não consiga descrever a emoção que senti ao conhecer um pouco
da história daquela baiana brasileira, criada, casada e enviuvada
naquelas terras onde, as marcas do trabalho na lavoura estavam tão bem
registradas no rosto, nos pés e nas mãos calejadas daquela heroína
silvícola. Enquanto ela falava rapidamente sobre o tempo em que morava
ali e que era atendida de quinze em quinze dias pelo proprietário das
terras, eu observava a surpreendente forma como fazia o sugerido café.
Num velho pano de prato em forma
de uma rede de dormir, com uma das extremidades presa num tronco que
sustentava uma das janelas existentes e a outra extremidade segura pela
mão esquerda, ela colocara certa quantidade de pó, torrado e moído por
ela mesma. Em seguida banhou o pó colocado com água fervente jogada de
uma chaleira empretecida pelo fogo do carvão. Ao mesmo tempo em que
começava a cair o líquido ela torcia o pano como se fosse uma roupa para
secar, deixando escoar aquele ralo café que já se misturava ao açúcar,
tipo cristal, colocado anteriormente numa caneca de alumínio, essa bem
diferente daquela chaleira de água, pois, brilhava muito com o reflexo
da luz natural que entrava pela janela. Finalmente após os primeiros
goles provados pude dizer, sem medo de estar sendo irônico ou debochado,
que aquele rústico cafezinho era o mais saboroso e mais cheiroso que eu
havia tomado em toda a minha vida, principalmente, por ter sido feito
daquela forma, naquele estranho coador e por uma representante nativa ou
um símbolo de coragem, de vida, de amor a terra e de brasilidade. Ao
final, depois de muita insistência, consegui convencê-la em aceitar uma
pequena gratificação que jamais pagaria o valor do aprendizado e da
experiência adquiridos naqueles pouco mais de quinze minutos passados
com aquela senhora.
Caros motociclistas;
Nunca esqueçam, em suas viagens
por esse brasilzão que, onde quer que passemos, onde quer que cheguemos
ou onde quer que pousemos, existirão sempre pessoas maravilhosas e de
bem, pessoas que merecem o nosso maior respeito e carinho para que, ao
deixarmos aquele local visitado, sejamos sempre lembrados como os
aventureiros que por ali passaram e deixaram marcas profundas de
amizade, carinho e amor com o próximo e para que, no ano seguinte,
possamos voltar e ser recebidos com tantas novas histórias para ouvir
mesmo que seja, apenas, durante uma rápida parada para um novo
cafezinho.
Uma homenagem a tantos brasileiros
anônimos ou desconhecidos, desses recantos por onde passamos e
aprendemos sem nada nos cobrar.
Sobre o autor
Cel Dario Cony
Coronel da Reserva Policia Militar Rio de Janeiro
Motociclista Brevetado, com o CFoMES - Curso de Formação de Motociclistas Escoltas e Segurança da Polícia Militar do RJ
Quando Capitão, comandou o Pelotão de Motociclistas do Batalhão de Polícia de Choque.
É Motociclista desde os 21 anos de idade e já
possuiu: Honda CB 125 Japonesa/73, Honda 350/75, Honda 400 Four, Honda
750 Super Sport, Yamaha RD 350/76, Suzuky 750 (três cilindros) Hondas
Shadow, 600 e 750 e hoje tem uma HD Rocker 2009.
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